A crise silenciosa do dólar: endividamento e tarifas colocam hegemonia dos EUA em xeque, avalia XP

Análise da XP Investimentos aponta riscos crescentes à dominância do dólar diante de desequilíbrios fiscais, medidas protecionistas e mudanças na ordem global

Nas últimas semanas, os mercados globais têm convivido com forte volatilidade, impulsionada principalmente pelas recentes medidas comerciais adotadas pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. No dia 2 de abril, o mandatário anunciou tarifas recíprocas contra mais de 180 países, argumentando que os acordos comerciais vigentes há décadas prejudicaram a indústria e os trabalhadores norte-americanos.

A decisão provocou reações imediatas: bolsas em queda, alta nos juros dos títulos soberanos dos EUA e desvalorização do dólar. Embora parte dessa movimentação seja considerada temporária por analistas da XP Investimentos — que aguardam definições sobre as tarifas, especialmente nas relações com a China — o episódio reacendeu um debate antigo, mas que ganha força: a sustentabilidade do chamado “privilégio exorbitante” do dólar como moeda de referência global.

Segundo a XP, esse privilégio remonta ao Acordo de Bretton Woods, de 1944, que consolidou o dólar como principal moeda de reserva internacional. Mesmo após o fim da conversibilidade com o ouro em 1971, a moeda americana manteve sua hegemonia, sustentada pela confiança nas instituições dos EUA, no sistema jurídico e na solidez financeira do país. Tal posição permitiu aos EUA manter déficits expressivos ao longo de décadas, financiados por uma demanda global constante por dólares.

No entanto, os analistas alertam que essa estrutura começa a mostrar sinais de desgaste. A dívida pública americana ultrapassou os US$ 36 trilhões, o equivalente a 122% do Produto Interno Bruto (PIB). O déficit fiscal, acima de US$ 1 trilhão por ano, tem se mantido elevado, representando 6,3% do PIB em 2024. Além disso, a baixa taxa de poupança doméstica e o déficit em conta corrente indicam uma forte dependência de financiamento externo.

A polarização política também tem dificultado avanços em reformas fiscais e tributárias. De acordo com a XP, tanto republicanos quanto democratas têm enfrentado obstáculos para aprovar medidas que possam equilibrar as contas públicas, gerando incertezas sobre o futuro fiscal do país.

Ao mesmo tempo, um movimento de desglobalização — intensificado pela pandemia, por tensões geopolíticas e agora pelas tarifas recém-anunciadas — está levando países a repensar a dependência do dólar. A China, por exemplo, tem promovido o uso do yuan em transações comerciais e ampliado sua reserva em moedas alternativas e ouro, sinalizando a construção de um sistema financeiro mais multipolar.

Nesse contexto, ativos considerados seguros, como ouro, franco suíço, iene japonês e até bitcoin, têm ganhado espaço. Para os estrategistas da XP, esse processo de diversificação é gradual, mas pode alterar de forma estrutural o papel do dólar no médio e longo prazo.

A reeleição de Trump e a imposição das tarifas são vistos como pontos de inflexão. Ao contrário de crises anteriores, em que o dólar se fortalecia, o recente episódio demonstrou perda de força da moeda mesmo com aumento dos juros dos títulos públicos. Embora parte das tarifas tenha sido revista e novas negociações iniciadas, o mercado permanece atento aos desdobramentos.

Entre os riscos apontados está uma possível redução da demanda por títulos do Tesouro, o que exigiria atuação mais direta do Federal Reserve. Esse cenário poderia pressionar a inflação e colocar em xeque a independência e a função do banco central americano como estabilizador do sistema.

Por outro lado, os Estados Unidos seguem sendo referência em inovação tecnológica, biotecnologia, inteligência artificial e energias renováveis. A vitalidade do ambiente corporativo e a capacidade de mobilizar capital são diferenciais que ainda sustentam a confiança internacional no país.

Para os analistas da XP, o chamado “cartão de crédito dourado” dos EUA ainda não foi cancelado, mas começa a apresentar sinais de desgaste. “Esse privilégio não é incondicional”, observam. “Nos últimos anos, começaram a surgir sinais de que essa confiança pode não ser eterna. De forma gradual, mas visível, o cristal começou a trincar.”

A conclusão da corretora é de que a manutenção da hegemonia do dólar dependerá menos da política monetária de curto prazo e mais da capacidade dos Estados Unidos de retomar o equilíbrio fiscal, ajustar sua política comercial e continuar inovando em um mundo cada vez mais interconectado — e, ao mesmo tempo, fragmentado.

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