A carne produzida pelos países do Mercosul foi alvo de duras críticas de parlamentares franceses na última terça-feira (26), durante uma votação simbólica sobre o acordo de livre-comércio entre o bloco sul-americano e a União Europeia. As declarações, que incluíram acusações de uso excessivo de hormônios, antibióticos e soja transgênica, foram amplamente contestadas por especialistas e representantes do setor agropecuário.
A votação simbolizou mais um episódio de tensão no debate sobre o acordo comercial, que enfrenta resistência principalmente de países europeus. “Nossos agricultores não querem morrer e nossos pratos não são lixeiras”, afirmou o deputado francês Vincent Trébuchet, comparando a carne do Mercosul a lixo e questionando a qualidade do produto.
Porém, especialistas brasileiros apontam que as acusações não têm fundamento e refletem desconhecimento ou, possivelmente, uma tentativa de manchar a imagem do Brasil e de seus parceiros no Mercosul.
Hormônios: Uso Proibido por Lei
Entre as principais acusações estava o uso de hormônios de crescimento na produção de carne. Contudo, no Brasil, o uso de hormônios com essa finalidade é proibido pela Instrução Normativa nº 55 de 2011 do Ministério da Agricultura. Apenas hormônios com fins terapêuticos ou para reprodução são permitidos, e mesmo assim em quantidades rigorosamente controladas.
De acordo com Rondineli Pavezzi Barbero, professor de bovinocultura de corte da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), esses hormônios não têm impacto na carne consumida. “As fêmeas abatidas nem entram em reprodução, e o que se utiliza é menor do que o que o próprio animal produziria naturalmente”, explicou.
Além disso, o Brasil monitora a produção por meio do Programa Nacional de Controle de Resíduos e Contaminantes (PNCRC). Em 2023, 99,76% das amostras analisadas estavam em conformidade com as normas.
Antibióticos: Uso Restrito e Controlado
Outro ponto levantado foi o suposto “uso massivo de antibióticos” pelos países do Mercosul. Porém, especialistas destacam que, no Brasil, o uso de antibióticos é restrito a casos de necessidade, com prescrição médica e seguindo normas internacionais do Codex Alimentarius — um conjunto de diretrizes de segurança alimentar adotado por 188 países, incluindo a União Europeia.
“A venda de antibióticos no Brasil é rigidamente controlada, e o país ainda participa de programas internacionais de enfrentamento à resistência antimicrobiana, como o Plano de Ação Global contra Superbactérias”, explica Henrique Pedro Dias, do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais Federais Agropecuários (Anffa Sindical).
Soja Transgênica: Uso Global e Seguro
Os parlamentares também criticaram o uso de soja transgênica na alimentação do gado. Porém, como aponta Bruno Lucchi, diretor técnico da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), o uso de soja transgênica é uma prática comum mundialmente, inclusive na França, que importa o farelo de soja brasileiro para alimentar seus próprios rebanhos.
“Não há evidências científicas de que a soja transgênica cause danos à saúde humana. Além disso, essa tecnologia reduz o uso de agrotóxicos, gerando benefícios ambientais”, afirma Lucchi.
Diferente do modelo europeu, o gado brasileiro é majoritariamente criado a pasto, com apenas 18% dos animais abatidos passando por confinamento, onde recebem ração por um período limitado de três a quatro meses.
Retratação do Carrefour
As declarações polêmicas ocorreram no mesmo dia em que o presidente do Carrefour Global, Alexandre Bompard, se desculpou por questionar a qualidade da carne do Mercosul. Anteriormente, Bompard havia anunciado que as lojas francesas da rede não comercializariam carne sul-americana, citando dúvidas sobre sua qualidade.
O pedido de desculpas foi bem recebido pelo governo brasileiro, mas o episódio reforçou as tensões entre os blocos comerciais. No Brasil, produtores chegaram a boicotar o Carrefour em resposta às declarações.
Acordo Mercosul-UE: Impasse Comercial e Político
As acusações francesas refletem a resistência de setores europeus ao acordo de livre-comércio entre Mercosul e União Europeia, que enfrenta críticas em temas como sustentabilidade e competitividade. Especialistas acreditam que as objeções se baseiam mais em questões protecionistas do que em preocupações reais com a qualidade da carne sul-americana.
“Essas falas são uma tentativa de desacreditar o Mercosul e proteger os interesses agrícolas europeus”, avalia Barbero. Para ele, o Brasil e os países do bloco devem continuar destacando os altos padrões de qualidade de seus produtos e o rigor de suas regulamentações.
Enquanto isso, o impasse comercial segue, com ambos os lados buscando preservar seus interesses em um cenário de intensas disputas econômicas e políticas.